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Memória de Dory

O peso dos livros
outubro 15, 2020

I nsira aqui sua onomatopéia predileta para o som de um suspiro de desagrado e decepção. Sim, porque é com um som desses que quero começar este texto, afinal comecei a escrevê-lo proferindo um. Contrariando os tutoriais de escrita, eu já tinha um título programado -- "Memória de Galinha" -- mas tive a infeliz ideia de colocar a expressão no Google. Com isso descobri que a sabedoria popular talvez não seja tão sábia assim, e que alguns estudos mostram que galinhas tem de fato uma memória mais longa do que os 30 segundos que dizem por aí. Eu confesso que não senti lá muita firmeza nos trabalhos que foram citados, principalmente nas partes que compararam uma galinha a uma criança de 7 anos, mas também não estou com tempo suficiente para fazer um estudo detalhado sobre a literatura científica no que tange a memória das galinhas, então, num raro arroubo de pragmatismo, pensei imediatamente em mudar o título para "Memória de Peixe".

Buum! (Agora eu escolhi a onomatopéia, aqui era óbvio). O Google não me deixou usar "Memória de Peixe" também. Parece que esses quase cilindros de carne e escamas também têm memória. Não sei qual o equivalente-criança do peixe, mas, diabos, não posso deixar algum hater começar a me criticar pelo título, então fui para uma alternativa segura, afinal a Dory de "Procurando Nemo" e "Procurando Dory" tem mesmo memória de peixe sem memória (ok, ok, no final fica tudo explicado, mas deixa quieto o raio do meu título).

Então, afinal, quem tem memória de Dory? Adoraria responder "a geração atual", mas isso não é verdade. Não vou morder a isca do conflito geracional. É tudo uma questão de contexto. Os conflitos (quase) sempre são entre grupos que viveram, e vivem, em contextos diferentes. E o mundo, hoje, criou um contexto onde a memória é algo superfluo, ou incômodo, ou ambos. Somos todos candidatos a vítimas desse contexto.

 
Quem se comunica por e-mail ainda? Dinossauros talvez. E-mails ficam registrados! Você pode (olha que absurdo) pesquisar e-mails antigos. Você pode ir lá e revirar algo que alguém escreveu 10 anos atrás! Não, não, isso não faz sentido. Tudo que interessa aparece quando você abre o Instagram. O resto já passou. No Twitter, meia hora atrás é tipo o século passado, meio que não existiu. E, para falar a verdade, o Twitter está virando meio que coisa de, sei lá, velho...

Você, cidadão digital, você vale seu último post! Ou melhor, você é tão descolado como indica o número de likes do seu último post (e traduza "likes" e "post" para o termo equivalente usado por sua rede social atual). E se a sua opinião ou seu meme não viralizou, não se preocupe! O jogo recomeça a cada segundo, é só postar novamente! E se as pessoas te marcaram do jeito errado, se o pessoal do "outro lado" fica pegando no seu pé, está tranquilo, você sempre pode criar um perfil novo, ou seguir a onda digital e mudar para o TikTok. Facebook usava sua avó (deve usar ainda, na verdade. Viva a inclusão digital!).

Então, quando alguém disser que a geração atual não tem memória, corrija-o. O mundo atual não tem memória, porque (acha que) não precisa de memória. Para quê lembrar do horário que marquei de encontrar alguém? Se eu não aparecer, ele me manda uma mensagem no Whatsapp.

A memória, quando aparece, serve em geral para dizer que em 2008 alguém escreveu um post supostamente homofóbico ou que tirou foto do lado de um comunista. Nessas horas, a memória do mundo ainda é longa. O mundo tornou-se uma Dory esquizofrênica. No fim, a memória hoje só serve para crucificar as pessoas, velhas, novas ou no meio do caminho. Memória agora é sinônimo de culpa.

Um mundo no qual tudo é pretensamente instantâneo tem pouco lugar para memória. Em um minuto cria-se um novo perfil, cria-se uma nova persona. Apagam-se os erros, apaga-se tudo. Não carregamos nada! A vida é leve, leve como uma pluma. Oca talvez, mas sempre temos a Netflix para preencher os espaços vazios.

Bem, perdoem-me, caras senhoras e caros senhores, se eu não quiser brincar disso com vocês. Passo a bola, fico com meus e-mails e quem sabe até volte a escrever umas cartas.

Além do mais, se eu me arrepender, sempre posso começar do zero amanhã. Ninguém vai lembrar mesmo.


4 Comentários

  1. Claudia Engel Vieira disse:

    Excelente texto!
    Minha onomatopéia predileta para o som de um suspiro de desagrado e decepção é “affff” e sim, concordo que o mundo se tornou uma Dory esquizofrênica. Do lado de cá, continuo usando e-mail, facebook, whatsapp, e tudo mais, mas não existe sabor igual ao de receber uma carta. Portanto, fique a vontade para enviar-me uma ou várias 🙂

  2. El Nascimento disse:

    Eu ia escrever um comentário aqui, mas quando vi que tem que preencher nome, e-mail e site (não tenho um), vi que levaria tempo demais, expirando o prazo de interesse geral no meu comentário. O meu próprio desejo de comentar já expiraria dado o lapso de tempo durante o preenchimento dos campos nome, e-mail e site (não tenho um) deste formulário eletrônico Kafkaniano. Twitter é melhor porque não pede nome, e-mail e site (não tenho um) a cada postagem. Já pensou se para cada ‘tuíte’ eu tivesse que fornecer nome, e-mail e site (não tenho um)? O contexto do ‘tuíte’ já teria perdido validade e eu seria cancelado por todos. Ah, claro, alguém vai argumentar que o campo ‘site’ [não tenho um] não é obrigatório. “Não viu a ausência do asterisco?!”. Para começar, como posso ver uma ausência, cara pálida? Se está ausente, não se vê. E então por que diabos colocaram o campo ‘site’? Fetiche por burocracia? E por que o anglicismo, ‘site’? ‘E-mail’? Sabiam que em francês ‘e-mail’ é ‘courriel’? Correio eletrônico! Ah, poupem-me. No tempo que levou para eu escrever este comentário até aqui já fui odiado por dois influenciadores digitais e três ‘youtubers’ (sem equivalente na língua de Camões) no Twitter. Viram só? Bem mais rápido e eficiente. 3, 2, 1, todo mundo já esqueceu este comentário.

    • Maurizio Ruzzi disse:

      Ei, não sei se vale entender assim tão bem o espírito do texto…

      E como assim sem equivalente na lingua de Camões?

      Influencer = metido (corrigindo seu erro no texto)
      Youtuber = aparecido

      e, claro

      blogger = babaca

      Mas se eles te odeiam, já tens meu apoio!

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