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O peso dos livros

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T em um tipo de gente que se acomoda muito, muito fácil. Com uma destreza extremamente eficaz, transforma tudo que lhe é minimamente confortável no novo status quo, e, ato contínuo, cria um discurso no qual isto é inevitável e/ou desejável, ou até mesmo nobre e magnânimo. Criaturinhas desprezíves, essas. Respondem por 99,99999% da humanidade.
Eu incluso.
O que me fez perceber isso? O peso dos livros. O peso físico, não o metafórico.
O apartamento onde moro tem uma bela sala de estar, em “L”, com a iluminação natural entrando pela extremidade superior da perna mais longa do “L”. Quando eu e minha esposa casamos, mudamos para cá, juntamos os móveis que já tínhamos e fizemos o possível para tornar o lugar habitável sem gastar nada com móveis novos (ou usados).
Deu aparentemente certo. Num canto (e mais um pouco) da sala ficou minha “biblioteca” – três estantes médias atoladas de livros, com uma cadeira de balanço em frente a elas, e eventualmente uma mesinha que visitou quase todos os cômodos da casa por 3 anos. De início achei ótimo, os livros à mão, e um lugar decente para lê-los. Nunca tive dúvidas que ia conseguir resolver o quebra-cabeça arquitetônico-decorativo de acomodar os velhos móveis no apartamento recém alugado .
Esta certeza ajudou para que eu demorasse tanto para perceber que a minha ideia decorativa genial da vez tinha dado errado. Os anos que meus livros passaram naquele local foram os anos em que eles menos participaram de minha vida. Era um pouco escuro demais, um pouco desconfortável demais, sempre deixávamos coisas demais empilhadas por ali, e o que era para ser uma biblioteca acabou virando só mais um canto.
Claro que aquilo gerou-me um incômodo, que crescia dia a dia. Mas era um filho de burro, o desgraçado, e a longa gestação durou três anos. Demorei para perceber que o sofá na frente da televisão era muito mais convidativo... é tão fácil sentar lá, apertar o botão do controle remoto e, como um mamífero inferior imbecilizado, sentar com os olhos pálidos e imóveis refletindo outros mamíferos saltitantes fazendo caras e bocas e grasnando alguma idiotice qualquer. Meu tempo médio de TV, que era de uma corrida de Fórmula 1 à cada duas semanas, aumentou muito mais do que eu gostaria de admitir.
Mas não foi de uma hora para outra. O sapo aqui foi cozido lentamente. Por algum acaso do destino, felizmente alguma coisa me fez pular antes que a morte cerebral fosse inevitável.Era uma armadilha boa, eu admito. Um conforto e um desconforto operando em paralelo. O sofá confortável e o controle remoto de um lado, e os livros do outro, isolados pelo muro invisível da falta de praticidade. Na verdade, eu não demorei para perceber que minha biblioteca estava mal posicionada. Mas daria trabalho para corrigir... não só o trabalho mental de pensar em outra disposição para nosso conjunto kitsch de mobília de ocasião, mas também o trabalho físico de retirar os pesados livros das estantes para poder movê-las, e depois recolocá-los todos de novo em seus devidos lugares.
Eu sabia que devia fazê-lo, mas por 3 anos empurrei a situação com a barriga. Como disse, gentinha desprezível... Pois bem, um dia acordo com disposição e, para felicidade de minha esposa, animo-me a colocar em prática alguma das tantas vezes discutidas propostas de re-decoração da sala. Problemas não faltam, mas perceber que trocar uma das estantes da sala por uma do escritório – um pouco menor –permitiria um ajuste crucial, que por sua vez permitiria outra mudança, e mais outra, e mais outra, fazendo todos os dominós arquitetônicos cairem em seu devido lugar, perceber esse detalhe resolveu tudo. Voilá! Burle Max não faria melhor.
Agora tenho os livros na parte mais iluminada da sala, e na frente deles, uma (outra) mesinha estratégica e um sofá que pega o sol da manhã. Qualquer um que entra na casa, sem perceber se vê atraído pelas estantes, pega um livro, senta-se e começa a folheá-lo. Agora, é confortável fazer isso. No lugar de apertar insistente o botão do controle remoto, deixando por meio segundo cada conjunto de imagens desconexas ofender meus olhos, agora posso me acomodar tranquilo com um livro repleto de esboços de Van Gogh no colo. Ao invés de ter de engolir amargamente um clichê mal encenado, posso reler o maravilhoso parágrafo de abertura de Anna Karenina. Escapo dos videoclips insipidamente sem sentido relendo o final de um livro de Steinbeck, que quase me fez enfartar da primeira vez que o li (e não, não vou dizer qual é, sem spoiler, meu caro leitor). Tendo uma valiosa e insubstituível tarde de Sábado pela frente, posso atracar-me com minha última aquisição cheia de páginas amareladas. E esplêndidas.
Céus! Estava tão perto! A vida está tão... tão, tão melhor agora. E o que, com todos os demônios, o que estava me afastando disso tudo? O maldito conforto, a incapacidade de fazer aquilo que eu sabia que deveria fazer em troca de uns míseros ergs de energia a mais.
Tão simples quanto isso.
Eu não poderia acabar sem uma lição de moral, como as de um livro de fábulas do século XVIII, que redescobri ao mover mais uma pilha de livros de um lado para o outro. Gostaria muito que alguém tivesse me dito isso anos atrás. Deveria ser ensinado em todos os cursos de Arquitetura e Design: Redecorar a sala constrói seu caráter.
Agora só falta dar um jeito na internet.

3 Comentários

  1. El Nascimento disse:

    Certo. É hora de revelar uma faceta acerca do autor da coluna acima. Ele participa de um grupo de ‘WhatsApp’ (sim, isto mesmo!). O tema do grupo não é relevante, mas sim o fato de que o autor dedica algum tempo por semana, longe de ser desprezível, a postar mensagens em um grupo de ‘WhatsApp’. Como eu sei disto? Digamos que eu apenas sei. Agora ele quer convencer o leitor de que é um indivíduo descolado (especialmente ‘descolado’ do mundo digital: “Agora só falta dar um jeito na internet”) que quer dedicar mais tempo aos seus livros com páginas amareladas. Fora isto, aquela foto ali, exibindo livros empilhados, pode muito bem ter sido foi obtida de páginas de busca na I-N-T-E-R-N-E-T….. <>…..Estou de frente à minha muito humilde estante de livros. Minh´alma está sendo acometida de um vontade irresistível de retomar a leitura interrompida de um livro do Jared Diamond. Muito obrigado senhor autor da coluna. Pode ter sido uma postagem ‘game-changer’ para mim, a começar pelo anglicismo desnecessário, mas que soa ‘cool’ neste momento de grande emoção. Com a licença de todos…

    • Maurizio Ruzzi disse:

      Calúnias! Calúnias!

      Desde daquele “trabalho” que deu errado porque os *seus* amigos não conseguiram manter a boca fechada, El Nascimento, que você não cansa de espalhar essas mentiras. Você e o resto do antigo bando, Los Locos… vocês são todos iguais. Eu nunca vi esse senhor chamado Whatsapp. Se vi, foi por aí, na rua, coisas da vida. Internet? Who’s the bitch?

      Wasn’t me. Wasn’t me.

      Game-changer, uh? Nunca é tarde, mesmo que para uns “old crooks” como nós…

  2. Giovanna Vaccaro disse:

    Genial!

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