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Corpos com vagina

#LivroLixo
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Aposta!
junho 9, 2024
 

Essas palavras são usadas na capa da mais recente (no momento que escrevo) edição do “The Lancet”. A expressão é bastante exata, apesar de que nenhuma expressão que se refira a humanos jamais possa ser absolutamente exata. Por sinal, seria ainda mais preciso usar “corpos humanos com vagina”. Mas estou digredindo. A motivação pelo uso desses termos é óbvia, e é claro que existem questões legítimas a se discutir a respeito. Chegaremos perto delas, mas vamos chegar lá pela avenida da memória. Da minha, ao menos.

Aqui vale um aviso, alguns termos chulos virão a seguir, mas são absolutamente indispensáveis no argumento.

Estava eu no início dos anos noventa, em um belo dia durante minha graduação, sentado numa mesa do centro acadêmico, junto com alunos alguns anos mais velhos do que eu. Quatro ou cinco anos pareciam uma eternidade então. Eis que, ao entrarem no recinto um grupo de colegas acadêmicas, um de meus companheiros, cujo apelido era “Alce”, exclama em alto e bom som:

“Oba, chegou buceta!”.

Alguém apontou que talvez houvesse modos mais sutis de demonstrar satisfação pela presença das recém chegadas. Mal sabia ele que Alce estava à frente de seu tempo. Hoje, ele poderia dizer, e com alguma empáfia até: “Oba, chegaram corpos com vagina”. Sendo realista, dado que a linguagem falada tem uma clara tendência de encurtar as coisas, é provável que em algum tempo fosse adotada a elipse “Oba, chegou vagina!”. Claro que “vagina” é um termo técnico, impessoal, e talvez até elitista. Portanto, o bom brasileiro será perdoado por usar “Oba, chegou buceta”. Se necessário, pode citar a última edição do Lancet como embasamento teórico de sua escolha de termos.

De fato, ainda antes disso, outra pessoa que conheço (nesse caso um velho amigo) em sua adolescência, lá nos anos 80, adotou o uso da sigla IPB (Indivíduo Portador de Buceta). Não deveria ter mais que 15 anos! Começo a me perguntar porque demorou tanto para o Lancet chegar aqui…

E eu não quero nem pensar qual termo as bucetas vão usar para saudarem a chegada daqueles que não têm buceta. Claro que “chegou pênis” é uma frase desajeitada, e não ia durar muito tempo. Consigo pensar em várias possibilidades de termos coloquiais, mas sem dúvida o leitor tem as suas. Vou deixar passar a chance de parafrasear Guimarães Rosa, em sua passagem que lista tantos nomes usados para chamar o diabo, e poupar a todos de um longo desfile de nomes populares de pênis. Caso se queira, sem dúvida a internet está aí para preencher seu papel de propagador de conhecimento.

A escolha por “buceta” para designar um grupo de pessoas não vem sem seus problemas. Um indivíduo heterossexual (com pênis) é atraído por… por buceta? O estereotípico machão vai adorar a ideia, porque dizer “eu gosto de mulher”, nos dias de hoje, pode não ser tão claro como ele gostaria. “Eu gosto de buceta” é claríssimo. E moderno!!! Dependendo da definição de “buceta” (e, creiam-me, essa discussão virá), estamos exatamente de volta ao início da conversa, e as pessoas supostamente “não discriminadas” pelo uso do termo “corpos com vagina” ao invés do termo “mulheres”, passam a ser imediata e inapelavelmente excluídas por não serem “corpos com vagina”.

Tudo isso mostra uma coisa que talvez devesse ser óbvia: muito, mas muito mais importante que um cuidado e um controle paranoico na escolha e uso dos termos, é encarar as questões reais que indivíduos reais enfrentam em seu dia a dia. Aspectos práticos, preconceito, escolhas coletivas, respeito às características e escolhas individuais. Todas essas questões são infinitamente mais importantes do que forçar todos os corpos com cérebro a se referir aos demais como corpos com pênis ou com vagina.

Claro que encontrar soluções para as questões referidas é algo extremamente difícil. Muito mais fácil é encontrar as inconsistências em abordagens infantilmente ingênuas (ou desonestamente equivocadas), que partem de pressupostos tão absurdos como a pretensão de controlar artificialmente a linguagem. Mesmo que se consiga controlar os termos e as palavras (o que, sinceramente, duvido que ocorra), sem a menor dúvida não é possível controlar o significado que as pessoas dão aos termos.

Ainda assim, pelo menos uma coisa podemos comemorar. O bom e velho Alce deve estar feliz. Pode falar “oba, chegou buceta!” o quanto quiser, que ninguém vai incomodar. Valeu, Lanceeet!

https://www.thelancet.com/journals/lancet/issue/vol398no10306/PIIS0140-6736(21)X0040-2?utm_campaign=cover21&utm_source=twitter&utm_medium=social

1 Comentário

  1. Claudia Engel disse:

    Excelente!

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