
Por muito tempo “literatura independente” tinha um significado bastante claro para mim. Uma literatura underground, feita por e para pessoas que se apresentam de maneira muito diferente da norma, com uma boa dose anárquica, simpática a todo e qualquer tipo de revolução, com muitas ideias sociais, políticas e ideológicas diferentes, todas elas contrárias àquelas vigentes no momento. Em resumo, uma literatura “contra essa porra toda que está aí”.
Parafraseando um comercial dos anos oitenta, essa é literatura independente que fazia a sua avó. Eu admito que simpatizo muito com ela – ainda que enxergue suas claras limitações. Mas ela é uma relíquia, uma peça de museu, como um telefone de disco (se você não sabe o que é um, o Google sabe). Em suma, essa ideia de literatura independente é obsoleta.
Por quê? Por várias razões, algumas boas, outras ruins. Vou começar pelas ruins: Em primeiro lugar, o mundo contemporâneo, esse mundo instantâneo e sem fronteiras em que vivemos, tem muita dificuldade de separar aparência de substância. Aquele cara com pose de malvadão que passou por você na rua talvez ainda more com mamãe, que vai escutá-lo reclamar se ele chegar em casa e não tiver sucrilhos. Como você pode saber o que é underground num mundo desses?
Não para por aí. Em um mundo onde a atenção do outro, com os likes, coraçõezinhos e comentários ditando o comportamento social das pessoas, como distinguir o que é feito para atrair a atenção daquilo que é espontâneo? E, ainda se for mesmo honesta, ainda se for mesmo espontânea, como poderia essa literatura independente, essa que é “contra essa porra toda que está aí” aparecer para mim num post do Instagram? O Instagram não faz parte da porra toda? A conta não fecha. Na verdade, essa conta nunca fechou, talvez tenha fechado apenas em um momento muito particular na história, durante aquele breve instante onde havia um quê de ingenuidade romântica em qualquer atitude rebelde. Na hora que o “easy rider” se olha no espelho, se vê na tela do cinema, ou tira uma selfie, o jogo acabou. A rebeldia acabou. O rebelde virou “essa porra toda que está aí”.
Ah, você vai dizer, mas tem a parte comercial. A literatura independente não tem nada a ver com a literatura comercial, aquela que vende muitos livros e dá lucros para muita gente. Bem, agora estamos quase concordando. A literatura independente não é – e não deve ser – controlada pela literatura comercial. A literatura independente “antiga”, a da sua avó, sem dúvida não era. Esse mérito ela tem. Mas a atual também não é. Ela pode tomar coisas emprestado – roubar literalmente – ideias da literatura comercial, da literatura e da cultura pop, mas não é controlada por ela – e esse é o ponto central da conversa.
Agora é a hora de nos perguntarmos uma coisa que talvez devesse ser a primeira a se perguntar quando se fala de literatura independente: Independente do quê? É aqui que a coisa pega. A literatura independente “antiga” se proclamava livre de interesses comerciais, orgulhosamente afirmava não se submeter ao “mercado”. É neste ponto que a literatura independente “atual” deu um passo além da literatura independente “antiga” (a da sua avó). A versão antiga, em seu afã de ir “contra essa porra toda que está aí”, não percebeu que, dessa forma, tornou-se completamente dependente daquilo que combatia. Ela precisava “da porra toda” para poder antagonizá-la. Sem “a porra toda” a velha literatura independente simplesmente não podia existir.
A literatura independente atual não tem essa limitação. Ela literalmente faz o que quer. Os autores escrevem sobre aquilo que mais gostam, sem nenhuma amarra, sem serem obrigados a antagonizar essa porra toda que está aí. O autor independente atual é absolutamente livre, genuinamente independente. Do mesmo modo que ele pode seguir uma tendência atual (seguir o hype), ele pode resolver fazer alguma outra coisa qualquer, só porque ele quer.
Ah, mas aqui está a parte complicada: o autor independente atual é produto do mundo atual, obviamente. Ele faz parte desse mundo que busca por likes e atenção. E isso pode muito bem influenciar em sua literatura, pode fazer com que ele produza nada mais do que uma cópia pirata de uma literatura absolutamente comercial, justamente por invejar a popularidade dessa. Isso, sem dúvida, acontece, e bastante.
Esse é o risco que corremos. Mas, sem risco, o que poderíamos ganhar? Como raios você pode achar que é possível fazer literatura sem risco? A literatura sempre, de um jeito ou de outro, vai te fazer descobrir algo, e esse algo pode ser desagradável. Você pode descobrir que é uma farsa. E os autores independentes estão aí, mostrando seus livros para o público, falando com outros autores. Eles estão correndo o risco de ouvir o que não querem ouvir. Como eles vão reagir? Ah, isso é outra história…
Mas esse não é o único risco. As coisas podem dar certo, alguém pode conseguir colocar alma em um estilo literário que de outra forma seria completamente insípido. Não existem limites para o que pode fazer um autor apaixonado pelo que escreve.
Esse é o resumo da literatura independente atual: uma literatura apaixonada pelo que faz. Pode ser uma paixão insípida e fútil? Pode. Pode ser passageira? Pode. Mas pode ser ela o que Romeu e Julieta sentiram um pelo outro? Sim, ela pode!
Aqui, por algum motivo, lembrei de um heterônimo (google, meu amigo, google) de Fernando Pessoa:
“Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.
Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.
As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.
Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.”
Talvez seja isso que descreva muito da literatura independente atual: são cartas de amor para a literatura e para a arte. Ridículas talvez, mas afinal só os autores que nunca escreveram de maneira independente é que são ridículos.
Eu poderia muito bem ter acabado meu texto agora. Eu teria saído por cima. Mas ainda falta uma confissão para eu fazer: eu admito que ainda estranho olhar para os lados e ver romances adolescentes, histórias românticas e/ou eróticas, dramas inspirados em novelas coreanas e mundos e mais mundos de fantasia como parte do exército da literatura independente. Eu não consumo esses estilos, e não me identifico com eles. Eu, no fundo, ainda gosto da rebeldia. Ainda gosto da ideia de ser marginal.
Mas uma lição da antiga literatura independente, daquele momento romântico e genuíno que ficou no passado, mas que para mim nunca acabou, uma lição eu aprendi: viva e deixe viver.
Escreva e deixe escrever.